Cristóvão espirrou quatro vezes seguidas e, graças a isso, saiu brevemente de sua pista. Ele rosnou de raiva enquanto procurava a caixa de lenços no porta-luvas sem sucesso. Tentava manter os olhos na pista e, depois de abrir o compartimento, ainda falhou em achar o que buscava.
— Merda — vociferou. — Porra de alergia do Diabo!
— Ei — alguma voz cavernosa respondeu. — Não tenho nada a ver com ela.
Olhando para o lado, o homem percebeu que alguém havia se materializado no banco do carona. Não um alguém qualquer, mas uma face familiar e caprina que havia visto há mais de uma década. Todo aquele tempo não a apagou de sua memória, normalmente falha.
— Quanto tempo, hein, Cristóvão? — disse o demônio.
— Céus — disse Cristóvão, recuperando-se do susto. Ao perceber o que havia dito, benzeu-se com a mão direita. — Digo... cacete. Faz uns quinze anos.
— Por aí. Mantenha os olhos na pista, diabo.
— Diabo é você.
Tim era seu nome, Cristóvão lembrava. Não podendo argumentar contra o que acabara de dizer, o demônio deu de ombros e assentiu com a cabeça. Os chifres raspariam no capô se a entidade profana não tivesse a cortesia de manter-se corcoviada em seu banco.
— Cuidado com essa porra desse chifre aí, parceiro — Cristóvão enfatizou.
— Tá desbocado, hein, rapaz? Que houve?
— Tu tá me devendo 250 ainda do banheiro que tu fodeu no meu apartamento.
— Você ainda mora lá?
— Não. Faz muito tempo que não. Se eu fosse te cobrar juros, eu tava rico.
— Acredite ou não, fico feliz que tenha citado esse incidente. Me desculpa por aquilo, mas estou aqui pra tratar de negócios mesmo.
— O quê?
O demônio agora tinha um charuto na boca, saído sabe-se lá de onde. De seu polegar direito saía uma chama alta, tal qual um isqueiro potente. Era cubano, e Cristóvão sabia exatamente qual era, pelo cheiro.
— Negócios, meu velho — disse Tim. — O que são 250 reais?
— Pra você, acho que nada.
— Nada! Claro. Sei que não está fácil pra ninguém.
— Sabe, é? — Cristóvão sorriu, pois era difícil acreditar.
— Sei. Você tá preocupado com o seu KPI, eu sei. E no escritório anda rolando uma conversa de corte nos gastos, não é?
O sorriso sumiu do rosto de Cristóvão. Finalmente a mão vermelha e colossal de Tim ofereceu-lhe um lenço. Ele tomou e assoou o nariz, aliviando-se novamente.
— Você está lá há muitos anos, você tem know-how, é confiável, mas não se engane. O mercado está atrás de carne fresca. Você não é carne fresca, e não será em outras empresas também. Capaz de ter que limitar suas opções no futuro próximo. Economizar um pouco. Levar uma vida mais modesta, mais “light”.
— O que você quer? — Cristóvão indagou, pois nada na vida era de graça.
— O que eu quero? O que eu quero não importa. O que você quer, Cris?
— Não me chame assim, é Cristóvão
— Desculpe. Mas e aí, Cristóvão? Essa alergia? — Tim estalou os dedos. — Já era. Gastar dinheiro com isso é passado. Mais importante ainda: sua saúde! De que adianta dinheiro sem saúde, chefe? Toma aí um pulmão novo. O que o médico te falou fica no passado também. O que importa é o agora.
Tim deu uns tapinhas no peito de Cristóvão. Toda a coriza havia sumido. Respirava como fazia quando era um recém-adulto, ainda sem o costume de fumar. Quando o charuto lhe foi oferecido, ele tomou e experimentou. Não caiu morto, pelo contrário. Sentiu-se como já não havia há décadas.
— Isso é bom, é interessante — disse Cristóvão. — Mas não existe almoço grátis, como dizem, né?
— Quem foi que disse essa merda? — Tim riu. — “Não existe almoço grátis”. Com o dinheiro que você tem agora, o almoço ser grátis ou não vai ser irrelevante.
— Sério? Mas não pode estar fazendo isso por bondade.
— Vou deixar essa tua dúvida no ar. Não te dei escolha, dei? Aproveite bem a vida enquanto dura, Cris.
A figura evaporou numa nuvem densa de enxofre. O cheiro era curioso, fez Cristóvão tossir. Ele parou o carro no acostamento e saltou pra fora. Percebeu, tirando o charuto da boca, que havia saído de uma Lamborghini que certamente não era o mesmo carro no qual havia entrado. Ele abanou a fumaça remanescente de seu benfeitor e murmurou:
— É Cristóvão, porra.
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