16.7.13

Sonho #02

Se eu me lembro?

Ah, sim! Eu me lembro, embora se tenha passado muito tempo e, com isto, as coisas mudado. Eu mesmo me mudei. Visito o local esporadicamente, porque tenho família lá. Acredito que seja mais comum que eu frequente em memórias, precisamente a infância.

É ainda um morro verde, com uma concentração de rochas isolada. As casas também são poucas, pois a chuva enterrou algumas delas; mas não a parte onde cresci, onde amei o crepúsculo e o luar, onde as águas do mau tempo inundavam os meus olhos de encanto. E eu assistia a tudo pela janela, submerso em fantasias, enquanto os demais, se não mal me lembro, se distraíam com a televisão  com a exceção dos meus avós: proibição da igreja. Eu nunca me importei com Deus.

Dormíamos todos cedo (ou na hora habitual de dormir). Eu, no entanto, algumas vezes, me entretinha com a insônia, curioso com o que poderia acontecer lá fora, sob o imenso silêncio das estrelas. Foi numa noite assim que eu me pus a caminhar para depois do portão.

Ele já havia deixado de ser um portão e se tornara parte do muro, com suas dez hastes metálicas quadrangulares, cruzadas por duas outras horizontalmente, de mesmo formato, pelo meio: uma aquém e outra além. Duas das dez formavam a borda vertical e duas outras encerravam a base e o topo. A princípio, passava-se por ali normalmente; porém, como era necessário mantê-lo fechado com corrente e cadeado, tendo de ir buscar a chave sempre que pediam passagem, o modo prático era escalá-lo e saltar. Claro, para nós, jovens. 

Agora, o velho portão de brancura enferrujada estava atrás de mim. O muro era um pouco mais alto, desnivelado: seguia morro acima e abaixo, até dois pátios. Uma escadaria cimentada ligava os dois pontos. Fora erguido com tijolos, revestido de concreto não inteiramente.

Eu pisava em terreno desregular, de terra com rochas fundas e vegetação rasteira e vária. Havia grande escuridão ao redor, todavia uma luz celeste me permitia enxergar as diversas trilhas, casas, árvores e precipício. Quanto mais distante da vista, tudo era breu, nada se distinguia. Percorri a pequena vereda. À esquerda, uma queda de pouca inclinação, dando numa residência e bananeira imensa; à direita, uma elevação com muito capim, dando curva ao caminho. Depois, uma bifurcação que ou me levaria a descer até uma moradia ou continuar no mesmo nível, à entrada duma igreja cinzenta.

Na verdade, as duas construções eram apenas uma. Uma família vivia no que seria o porão da igreja, cujo acesso era externo, com o quintal um tanto estreito. Um novo portão metálico, com barras cilíndricas verticais do busto para cima, fechava a igreja. Era possível ver o interior por elas. Entrei. Um corredor curto levava até o pátio da cantina. 

Havia algumas portas azuis ao redor, naquele espaço quadrado. Embora estivesse iluminado, dentro da cantina se fazia um negrume sólido. No chão, próximo aos meus pés, a tampa de um calabouço me punha curioso. Nunca antes o vira. Era de madeira, umas tábuas pregadas nas outras, com uma argola de ferro, aparentemente pesada. Suspendi-a, entretanto, sem qualquer esforço.

O susto me tomou o fôlego, ao abrir passagem a um demônio. Escapava da treva ligeiro, raivoso, olhos nevoentos, tez rugosa, rígido feito gárgula, gris. Mais de dois metros e alado. Corriam pelo corpo estriado veias ou rachaduras. Um ódio gutural soava por entre suas presas, mas não só por isso corri para fora, de volta ao caminho, cego de medo. Logo, não pude evitar o despenhadeiro.

O desespero é como uma embriaguez doce ou um fumo orgasmático. Caímos em seu leito com as ideias às voltas, olhos turvos e todo o resto perdido. Não há sensações que o vença, estão todas à sua mercê  e o raciocínio apenas fagulha. Sabe-se que ele é amante da boa sorte e, algumas vezes, ela lhe falta.

Quando me atirei para longe do meu perseguidor, preferindo esfolar-me na queda a ser dilacerado na captura  ou, talvez, me faltava consciência do ato , senti o ar conduzindo-me, como se o meu corpo não pesasse. Estava suspenso, à deriva: levava-me a impulsão dos meus pés, sem forças contrárias para me frearem. Eu era uma brisa. Com os olhos adiante, a vista se encheu de lume deslumbrante. A lua, tão clara e manchada, era o meu destino.

Esquecera-me que fugia. A lembrança me fez olhar para trás e ele estava próximo, a ponto de agarrar-me pelos tornozelos. Quis acelerar. Não sabia como e a falta de solução me rasgava em agonia. Havia a vontade fervilhante, oriunda das minhas entranhas, contudo não havia um apoio impulsor. Cresceu até explodir em vendaval de fogo, rodopiando o desespero, a agonia, em ciclone ácido e, morto, abri os olhos.

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