21.10.13

Minha raposinha sempre bela

Minha raposinha sempre bela.
Muito bonita e jovem.
(Vaidade, talvez... Sim. Vaidade.)
Linda, linda.

Em teu quarto, nós dois: no sofá, tu; no chão, eu.
Teus olhos: tanto sono, quase sonho... A voz esmorecida...
Que bom cheiro, Memória! Que pele! Curvas!
Bela raposa – horizontalmente bela –, bom sono.
Também bom pelo.
E os cachos? Por que não mais cachos?
Vaidade...

O corpo curvo de frio, pequeno.
Meus ouvidos, fiéis; meus olhos – livres – em ti, num campo farto e
[brônzeo,
Com uns leves tecidos brancos sobre tudo.
Dos seios miúdos à anca contrária.
E tu contrária a mim, a minhas palavras, planos, vontades.
Ainda assim, bela. Para mim, bela.

As mãozinhas, juntas, entre o rosto e o travesseiro alto,
Quando, em mim, uma palpitação sísmica.
Quantos anos, quanto tempo, naquele envelhecimento de instante?
Minha raposinha hedionda...
Bela, antes; velha, então.
E o espanto em meu rosto – no meu pelo teu?
Não à vista, pois o sono.
Uma alma, trêmula; a outra, sonâmbula;
Mas ambas dum roncar pavoroso de sono e surpresa pelo mutável
[imediato.
A pele frouxa, olhos assimétricos, boca sinuosa.

Num volver lânguido, as costas, o pelo sem cachos.
O silêncio, enfim.
Apenas gotas de espanto espaçadas;
Uma poça de espanto fugidia.
Mais espaço entre nós.

Eu, um poente.
(Um tecido escuro sobre mim.
Do corpo extenso ao pensamento basto.)
Tu, não mais bela? Esmorecimento?
Eis a cegueira, o túmulo;
Eis o não-pensar, e a cicatriz na memória.

13.8.13

Haicai

Fios alvi-negros:
Menos sombra do que a sombra
Da copa auri-verde.

16.7.13

Sonho #02

Se eu me lembro?

Ah, sim! Eu me lembro, embora se tenha passado muito tempo e, com isto, as coisas mudado. Eu mesmo me mudei. Visito o local esporadicamente, porque tenho família lá. Acredito que seja mais comum que eu frequente em memórias, precisamente a infância.

É ainda um morro verde, com uma concentração de rochas isolada. As casas também são poucas, pois a chuva enterrou algumas delas; mas não a parte onde cresci, onde amei o crepúsculo e o luar, onde as águas do mau tempo inundavam os meus olhos de encanto. E eu assistia a tudo pela janela, submerso em fantasias, enquanto os demais, se não mal me lembro, se distraíam com a televisão  com a exceção dos meus avós: proibição da igreja. Eu nunca me importei com Deus.

Dormíamos todos cedo (ou na hora habitual de dormir). Eu, no entanto, algumas vezes, me entretinha com a insônia, curioso com o que poderia acontecer lá fora, sob o imenso silêncio das estrelas. Foi numa noite assim que eu me pus a caminhar para depois do portão.

Ele já havia deixado de ser um portão e se tornara parte do muro, com suas dez hastes metálicas quadrangulares, cruzadas por duas outras horizontalmente, de mesmo formato, pelo meio: uma aquém e outra além. Duas das dez formavam a borda vertical e duas outras encerravam a base e o topo. A princípio, passava-se por ali normalmente; porém, como era necessário mantê-lo fechado com corrente e cadeado, tendo de ir buscar a chave sempre que pediam passagem, o modo prático era escalá-lo e saltar. Claro, para nós, jovens. 

Agora, o velho portão de brancura enferrujada estava atrás de mim. O muro era um pouco mais alto, desnivelado: seguia morro acima e abaixo, até dois pátios. Uma escadaria cimentada ligava os dois pontos. Fora erguido com tijolos, revestido de concreto não inteiramente.

Eu pisava em terreno desregular, de terra com rochas fundas e vegetação rasteira e vária. Havia grande escuridão ao redor, todavia uma luz celeste me permitia enxergar as diversas trilhas, casas, árvores e precipício. Quanto mais distante da vista, tudo era breu, nada se distinguia. Percorri a pequena vereda. À esquerda, uma queda de pouca inclinação, dando numa residência e bananeira imensa; à direita, uma elevação com muito capim, dando curva ao caminho. Depois, uma bifurcação que ou me levaria a descer até uma moradia ou continuar no mesmo nível, à entrada duma igreja cinzenta.

Na verdade, as duas construções eram apenas uma. Uma família vivia no que seria o porão da igreja, cujo acesso era externo, com o quintal um tanto estreito. Um novo portão metálico, com barras cilíndricas verticais do busto para cima, fechava a igreja. Era possível ver o interior por elas. Entrei. Um corredor curto levava até o pátio da cantina. 

Havia algumas portas azuis ao redor, naquele espaço quadrado. Embora estivesse iluminado, dentro da cantina se fazia um negrume sólido. No chão, próximo aos meus pés, a tampa de um calabouço me punha curioso. Nunca antes o vira. Era de madeira, umas tábuas pregadas nas outras, com uma argola de ferro, aparentemente pesada. Suspendi-a, entretanto, sem qualquer esforço.

O susto me tomou o fôlego, ao abrir passagem a um demônio. Escapava da treva ligeiro, raivoso, olhos nevoentos, tez rugosa, rígido feito gárgula, gris. Mais de dois metros e alado. Corriam pelo corpo estriado veias ou rachaduras. Um ódio gutural soava por entre suas presas, mas não só por isso corri para fora, de volta ao caminho, cego de medo. Logo, não pude evitar o despenhadeiro.

O desespero é como uma embriaguez doce ou um fumo orgasmático. Caímos em seu leito com as ideias às voltas, olhos turvos e todo o resto perdido. Não há sensações que o vença, estão todas à sua mercê  e o raciocínio apenas fagulha. Sabe-se que ele é amante da boa sorte e, algumas vezes, ela lhe falta.

Quando me atirei para longe do meu perseguidor, preferindo esfolar-me na queda a ser dilacerado na captura  ou, talvez, me faltava consciência do ato , senti o ar conduzindo-me, como se o meu corpo não pesasse. Estava suspenso, à deriva: levava-me a impulsão dos meus pés, sem forças contrárias para me frearem. Eu era uma brisa. Com os olhos adiante, a vista se encheu de lume deslumbrante. A lua, tão clara e manchada, era o meu destino.

Esquecera-me que fugia. A lembrança me fez olhar para trás e ele estava próximo, a ponto de agarrar-me pelos tornozelos. Quis acelerar. Não sabia como e a falta de solução me rasgava em agonia. Havia a vontade fervilhante, oriunda das minhas entranhas, contudo não havia um apoio impulsor. Cresceu até explodir em vendaval de fogo, rodopiando o desespero, a agonia, em ciclone ácido e, morto, abri os olhos.

20.5.13

Lívia

— Breno? — Ela chamava, sorrindo escuro, olhos alvi-fagulhantes.

A lua se debruçava pela janela, cobria Lívia com véu transluzente, pálida. As costas e a anca curvas, num serpentear lânguido, abrasando os seios em minha pele, mergulhada na escuridão de meu corpo.

— Breno? — Chamava sorrindo, lábios gris-cintilantes, olhos noturnos.

Amor luarado, tez lívida. Os meus dedos escorriam pela luz, pelas costas, pela anca, até o escuro, constritos. Uma brisa abria sua boca e ela se arrepiava. Aguada, afogava-me, inundando meus lábios. Com novos ares a encher-me, despertei como se sufocasse, desesperado por ar. Meus dedos se fecharam, agarrando um tecido úmido, e ouvi o estalar abafado da água contra o piso. Levei a mão à vista e o que havia era uma pequena calcinha voluptuosamente perfumada.

16.5.13

753 Recreio

Despertou Aurora, a de fios áureos, lançando os dedinhos róseos ao ar. Arranhava a imensidão, partia o cobertor cuja alvura e maciez provinham de tempos de claridade, antes ou depois de o mundo se obnubilar, e descobria Hélio, o de corpo ardente. Sombrio, ergueu-se lentamente para ninar Aurora até o retorno de Diana de seu pernoite. Na hora clara, ao festejarem os pássaros o calor da vida, já deveria estar de volta. Mas não: já faz uns dias que não sabem dela. Mesmo assim adormece Aurora e inicia Hélio sua caminhada até o ponto mais alto da morada.

Para alguns, é vil. Lança um olhar furioso que cega aqueles que o encaram. Outros passam cabisbaixos, temerosos ou exaustos: braços e cabeça dependurados; torso derretido, com odor repulsivo; joelhos desejosos de se dobrarem; pés constrangidos, borbulhantes. Para os que o adoram, sua presença é festiva. Dá-lhes Hélio segurança. Deitam-se sob a vigília incandescente de seus olhos, esticam mantas ritualistas às orlas, oferecem seus corpos ungidos pelo fogo de sua essência. O rei ígneo, da alta torre do reino, vigia e acalenta o repouso dos servos.

Um rei sem rainha, observe-se. Toma por amante a plebe, dia após dia, com exceção daqueles em que desperta anuviado, lânguido, frio. Quando assim, poucos ousam atravessar portas afora. Se deixam a casa, fazem por obrigação. Os que padecem de inércia se vão por janelas, com o silêncio da morfina.

Hélio, não. Sempre desperto, sempre às voltas. Por um lado, Aurora: sua vida, seu emergir; por outro, Diana o põe abaixo, roubando-lhe o brio. Não há paixão mais funesta do que a de Hélio e Diana. Sabem todos que, ao ir ao outro extremo da alta casa, ocupa Diana sua ausência, envolta num véu de brilhantina que, por vezes, usa para ocultar a face. Hélio, ainda que esquecido e distante, faz pousar em Diana sua luz, seu ser. Contudo basta a querer próxima para que nos fuja a todos à vista.

Deixava o amante, inflamado, o cerúleo mirante em que estava e, a poucos passos descidos, saída de alguma sombra, contemplava a mulher mais bela de sua partida. Era uma de sua apreciada ralé, das que o celebram e se entregam ao fervor de seu corpo. Ela não podia negar. Carregava consigo a marca, na cútis, do amor brônzeo: sua pele, invejada, de cor lasciva. E tinha beleza jovem, com formosura de mulher adulta. Além disso, e da delicadeza comum às pequenas, possuía a noite nos olhos e os fios de Aurora, embora as raízes negassem.

Quem toma para si essa imagem, ou outra de igual deleite, não faz memória de traje. Nunca tendo visto, porém, o corpo como se desejava ver e, assim, não sendo possível imaginá-lo com precisão, desenha-se a vestimenta que lhe apraz, ou a nudez que excitar.

Estava num ponto de ônibus, à espera, ansiosa de chegar aonde quer, vestida a pensamento livre. Quando à distância de distinção, pôde enxergar o letreiro “753 Recreio”. Então, estendeu o braço direito, dobrando-se Hélio para beijá-lo com hálito quente, dos delgados dedos à salina tez, e o condutor viu o membro estendido, freando de imediato, para que entrasse a bela em seu carro.

Dentro, a cancela rotatória estalou; pequenas peças metálicas tilintaram, duma mão à outra; a máquina roncou adiante. A mulher se sentou numa das primeiras poltronas, à janela, de frente a um anteparo de vidro. Do outro lado, havia um pano azul, junto a ele, que ocultava a feiura além  de outra mulher, responsável pelas passagens, e do motorista veloz , fazendo refletir a beleza aquém, como anelava Hélio, com ornamentos cintilantes. Os fios de ouro brilhavam vivazes, com o fulgor dos raios do meio-dia, e todos ao seu redor não passavam de sombras e, como tais, pelo seu lume morriam. Um vento forte invadia a janela, volteando o bronze candente que abrasava paixão, ciúme e inveja.

O ônibus corria sobre a pista negra num deslizar imprudente, ignorando avisos, obstáculos e qualquer outro veículo que lhe quisesse acompanhar a corrida. No entanto nada à formosa importava. Tudo era vulto deixado para trás. Seus dedos finos entremeavam nos fios claros, penteando, e os seus olhos examinavam a posição das mechas pela penteadeira improvisada. Era tão fantástico o reflexo auri-brônzeo que por ele se encantara, e quanto mais, com as mãos, perturbava as ondas do cabelo, mais se prendia às próprias carícias. Quem, no entanto, se a visse, não sufocaria em fascínio?

De repente, soluçou um espanto, uma paixão dilacerante, e se lançou contra si, o espelho, na ação brusca dos freios, no som febril e derrapante dos pneus. Dividiu a imagem em várias, cada parte numa moldura fendida. Enrubesceu mais a face  agora veiada por córregos escarlates  e os lábios pulsantes, molhados, gotejando a gula do beijo. A luxúria preencheu todo o lugar, dando vida ao inanimado. Assim, a ferragem, excitada, a penetrou por todos os lados: um orifício para cada metal trespassado. Uma orgia férrea. E, ao fim, quando o ânimo se esvai, nem suspiro se ouve. A amante queda em descanso profundo, numa alcova metálica de armação retorcida, enquanto o rubor se desvanece por hastes abaixo.

Como que se apagando, caía Hélio numa melancolia rubra, com a chegada da noite púrpura. Vestiu o arrebol e seguiu oculto a seu repouso. Não por acaso, surgiu Diana ao longe, oposta, furtiva, como um arco tênue de luz descoberto na imensidão escura. Ninguém os viu, todavia. A população mórbida admirava o ocaso terreno que formara um lago negro na via.