14.10.23

Haicai

A nuvem desceu
E fez a noite cair...
Tão pesada a chuva.

27.8.23

Haicai

A chuva entristece,
Mas feliz é o verdejar.
Assim é o domingo.

29.7.23

Haicai

Minha gata mia,
É hora de levantar.
Mas a chuva nega.

8.3.21

As gatas

Contemplai, vós que passais, a noite;
Olhai para os telhados das casas;
Esperai: sentai em cadeira ou caixa;
Protegei-vos do frio do açoite.
Tão logo o dia calmo se afasta,
Pronto chega a agitada sonoite
E saem às ruas patas felinas.

Ó Lua, luzi este palco negro!
Fazei brilhar olhos obscuros
Da prole que Bastet deu ao mundo.
Então direi quem sobe primeiro,
Quem adentra o cenário noturno.
Assim que chega, para no meio,
Resoluta, Bebel, a bravia.

Imponente, tal qual fosse a Mãe,
Observa a gente que se amonta,
Como se levassem vida à toa,
Como se a vida lhes fosse vã.
Então dizendo: “Estamos prontas”,
Entra Mel, sem vontade de afã,
Co' um miado que faz sorrir o público.

E Bebel se afasta, desconfia
Dos passos vagarosos, silentes;
E Mel se aproxima persistente,
Revelando travessa porfia;
E trocam olhares descontentes,
Tornando Bebel mais arredia.
É quando Lola surge confusa.

Vem zigue-zague, trocando patas;
Vem cautelosa, pisando torto,
Pelas telhas rubras do composto.
É aquela que, no andar, se atrapalha.
(E outra vez, o sorriso nos rostos).
Faz parar a contenda das gatas,
Que debandam, ambas surpreendidas.

Molenga, esparrama-se nas telhas
E começa lenta lambedura.
A pata traseira aponta a Lua,
Enquanto a língua corre por ela.
Com dois olhos decorando a rua,
A sisuda Cherie observa
A irmã bem acomodada ali.

Mas, num pulo, é Magali que avança
E vem andando com certa pose,
Como se a líder do bando fosse.
Lola, agora alerta, se levanta
E desajeitadamente corre,
Muito depressa dali se afasta,
Em fuga ligeira às outras duas.

A estrela da noite: Magali.
A atenção de todos lhe pertence.
Assim, distraída, não percebe
Que logo às costas está Cherie,
Há muito só observando inerte.
Mas salta co' o repentino ouvir
Dum miado profundo pelas ruas.

Todas ouvem e também se espantam
Co' os ecos do miado cavernoso.
Co' o susto de saltar-lhes os olhos,
Vão-se às pressas das telhas, debandam.
Mas donde vem o miado da noite?
Na vastidão, revela-se a face
De Selina, já não mais terrestre.

25.5.20

Sonho #07

Não me é possível descrever Paris com precisão, pois não a conheço, nunca estive lá. A minha referência é um quadro da sala, feito em aquarela, retratando a cidade. Um bulevar, imagino. Cadeiras e mesas postas em frente a bares e cafés; vitrines convidativas; árvores magras, bem podadas, distantes umas das outras. Nenhum carro transitava, ali. Não havia pista para tal. Apesar do céu gris, as pessoas passeavam como se fosse dia de sol. Meu amigo e eu andávamos por lá, os olhos atentos a tudo. Não os deles, que apontavam para frente, pois vinha até nós sua antiga namorada.

Paramos diante dum prédio estreito, como os demais. Eu, apenas por um instante, pois continuei meus passos. Eles se cumprimentaram num abraço, já dando início a um diálogo, que só interessava aos dois. Sequer me viram tomar distância nem deram pela minha falta, presumo. Segui por aí, a esmo, até uma praça, se isto é certo. Um conhecido cruzou meu caminho, alguém que não via há anos. Vestia-se como um bombeiro, de camiseta vermelha, calça grossa e coturnos. Não parou, como se não me visse ou não me reconhecesse. Quanto a mim, acompanhei-o com os olhos, com aquela surpresa de encontrar alguém que não mais frequentava minhas memórias.

Continuei, em sentido oposto, sem dar importância àquilo. Vi-me diante dum gradeado alto, fechando uma das saídas do lugar. Ia dum edifício ao outro, que se encaravam, e do outro lado havia um casebre, um simples cubo de concreto. Não sei o que deu em mim, resolvi escalar a grade e assim o fiz, sem pudor algum. No topo, saltei para a laje daquela construção e afundei, como se tal fosse ilusão, como se eu fosse incorpóreo. Trespassei para dentro, confuso. O lugar era pequeno, bagunçado: um tanto de papéis espalhados sobre mesa, escrivaninha; alguns enrolados, talvez mapas ou plantas; pôsteres na parede; um armário num canto; um sofá ao lado. Não havia janelas. Não dei muita atenção àquilo tudo, apenas queria sair. Fui até a porta e, como antes, atravessei para o outro lado.

Uma rua longa, delgada e deserta se via à frente. Cruzei-a às pressas, como que em fuga, e parei diante do mar. Ondas calmas se quebravam contra as rochas e eu, hipnotizado, encontrei a paz. Demorei-me ali, a observar. Então, num impulso, saltei o mais longe que podia, evitando as pedras. Mergulhei além das ondas, afundei por um instante e emergi. Não via mais nada, somente o horizonte. As ondas se formavam no ponto onde eu boiava, fazendo-me oscilar. Um raio caiu no horizonte e vi a corrente elétrica correr sobre a superfície, porém não me alcançou. De qualquer forma, nadei para fora da água.

De volta à rua, avistei um homem sentado num banco, todo de terno marrom, sozinho. Tinha um jornal em mãos. Ao aproximar-me, reagiu com estranheza, seu rosto se desfigurou numa preocupação súbita. Ele não me via, mas sentia minha presença. Tentei interagir com o sujeito, que imediatamente se levantou, assustado. Um cão vadio rosnou para o nada, também incomodado. Tentei fazer-me visível, o que não funcionou, e o rapaz se afastou de mim, apavorado. O cachorro rosnava doido, rodopiava, e encontrou aquele. Atacou-o. Uns golpes de jornal apartaram o animal, todavia. Naquela hora, entendi o que estava acontecendo: sempre que eu tentava interagir com o mundo material, causava algum distúrbio na atmosfera e os seres sensíveis, mediúnicos, agiam daquele jeito. Assim, fiz provar meu raciocínio e tentei tocar as barras dum portão próximo. Mais cães vieram, saindo de não sei de onde, e o homem se viu rodeado. Agora, propositalmente perturbava a energia do ambiente, com minha vontade incessante de ser corpóreo, e o rapaz era atacado por cachorros raivosos, loucos. Uma cena de horror. Ainda hoje ouço seus gritos com clareza.