Não me é possível descrever Paris com precisão, pois não a conheço, nunca estive lá. A minha referência é um quadro da sala, feito em aquarela, retratando a cidade. Um bulevar, imagino. Cadeiras e mesas postas em frente a bares e cafés; vitrines convidativas; árvores magras, bem podadas, distantes umas das outras. Nenhum carro transitava, ali. Não havia pista para tal. Apesar do céu gris, as pessoas passeavam como se fosse dia de sol. Meu amigo e eu andávamos por lá, os olhos atentos a tudo. Não os deles, que apontavam para frente, pois vinha até nós sua antiga namorada.
Paramos diante dum prédio estreito, como os demais. Eu, apenas por um instante, pois continuei meus passos. Eles se cumprimentaram num abraço, já dando início a um diálogo, que só interessava aos dois. Sequer me viram tomar distância nem deram pela minha falta, presumo. Segui por aí, a esmo, até uma praça, se isto é certo. Um conhecido cruzou meu caminho, alguém que não via há anos. Vestia-se como um bombeiro, de camiseta vermelha, calça grossa e coturnos. Não parou, como se não me visse ou não me reconhecesse. Quanto a mim, acompanhei-o com os olhos, com aquela surpresa de encontrar alguém que não mais frequentava minhas memórias.
Continuei, em sentido oposto, sem dar importância àquilo. Vi-me diante dum gradeado alto, fechando uma das saídas do lugar. Ia dum edifício ao outro, que se encaravam, e do outro lado havia um casebre, um simples cubo de concreto. Não sei o que deu em mim, resolvi escalar a grade e assim o fiz, sem pudor algum. No topo, saltei para a laje daquela construção e afundei, como se tal fosse ilusão, como se eu fosse incorpóreo. Trespassei para dentro, confuso. O lugar era pequeno, bagunçado: um tanto de papéis espalhados sobre mesa, escrivaninha; alguns enrolados, talvez mapas ou plantas; pôsteres na parede; um armário num canto; um sofá ao lado. Não havia janelas. Não dei muita atenção àquilo tudo, apenas queria sair. Fui até a porta e, como antes, atravessei para o outro lado.
Uma rua longa, delgada e deserta se via à frente. Cruzei-a às pressas, como que em fuga, e parei diante do mar. Ondas calmas se quebravam contra as rochas e eu, hipnotizado, encontrei a paz. Demorei-me ali, a observar. Então, num impulso, saltei o mais longe que podia, evitando as pedras. Mergulhei além das ondas, afundei por um instante e emergi. Não via mais nada, somente o horizonte. As ondas se formavam no ponto onde eu boiava, fazendo-me oscilar. Um raio caiu no horizonte e vi a corrente elétrica correr sobre a superfície, porém não me alcançou. De qualquer forma, nadei para fora da água.
De volta à rua, avistei um homem sentado num banco, todo de terno marrom, sozinho. Tinha um jornal em mãos. Ao aproximar-me, reagiu com estranheza, seu rosto se desfigurou numa preocupação súbita. Ele não me via, mas sentia minha presença. Tentei interagir com o sujeito, que imediatamente se levantou, assustado. Um cão vadio rosnou para o nada, também incomodado. Tentei fazer-me visível, o que não funcionou, e o rapaz se afastou de mim, apavorado. O cachorro rosnava doido, rodopiava, e encontrou aquele. Atacou-o. Uns golpes de jornal apartaram o animal, todavia. Naquela hora, entendi o que estava acontecendo: sempre que eu tentava interagir com o mundo material, causava algum distúrbio na atmosfera e os seres sensíveis, mediúnicos, agiam daquele jeito. Assim, fiz provar meu raciocínio e tentei tocar as barras dum portão próximo. Mais cães vieram, saindo de não sei de onde, e o homem se viu rodeado. Agora, propositalmente perturbava a energia do ambiente, com minha vontade incessante de ser corpóreo, e o rapaz era atacado por cachorros raivosos, loucos. Uma cena de horror. Ainda hoje ouço seus gritos com clareza.
25.5.20
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