2.10.08

Grilo filho da puta!

          Chovia em Copacabana como não acontecia há meses, 50 milímetros de chuva estacionária. Virgílio abriu a janela e respirou fundo. Há muito tempo não sentia aquele cheiro de terra molhada. Ele morava no segundo andar do prédio. Podia, enfim, soçobrar-se em nostalgia.
          Após afastar-se alguns passos, algo entrou pela janela como um pequeno foguete que dançou frenético ao redor da lâmpada cinco vezes. Parecia um beija-flor, mas ao grudar-se no limite do teto com a parede, o homem notou que era um grilo. Ou um gafanhoto. Um grilo do tamanho de um gafanhoto.
          Virgílio tomou café e continuou o que estava fazendo antes de abrir a janela para deixar a chuva salpicar o sinteco e seu rosto. Sentou-se à mesa para continuar seu projeto no laptop. Ele ao menos tentou, pois sempre olhava por sobre o ombro para ter certeza de onde estava o invasor. Sempre no teto.
          As horas se passaram e o sono chegou. O homem deitou-se no sofá e desligou a televisão. Estava quase pegando no sono. Seus olhos pesados fechavam-se involuntariamente, sua consciência era invadida por uma película onírica, até que um som estridente o atrapalhou em seu embarque.
          Olhando para o teto, certificou-se de que o inseto ainda estava lá, verde como grama, virado para baixo como se estivesse entretido com o que acabara de fazer. Virgílio estava cansado demais para tomar alguma atitude no momento, sua vontade de dormir era maior que qualquer coisa.
          Volta e meia, antes dele finalmente adormecer de vez, uma coceira surgia em partes aleatórias de seu corpo como se um inseto caminhasse sobre ele. Aquela sensação horrível era apaziguada quando ele abria os olhos para constatar que o diabo verde ainda estava no teto, preso por sabe-se lá qual maquinação biológica o prendia ao concreto.
          O sol bateu no rosto de Virgílio e ele acordou com dor de cabeça. A chuva foi embora de vez durante as horas mortas da madrugada. Tinha se esquecido do inseto, mas o viu por acidente. Lá estava ele, no teto, como se houvesse abdicado do direito de se mover. Isso até repetir o som irritante da noite passada.
          Virgílio levantou, preparou mais café e voltou para a sala. Agora o inseto havia descido ao encosto do sofá. Apressado, ele foi buscar um jornal para conduzir o bicho pra fora do apartamento, mas, ao voltar, ele havia sumido.
          As horas se passaram. Novamente aquela sensação: o comichão na nuca, ou a coceira no joelho, uma olhadinha no pé, só para ter certeza. Ele havia desviado a atenção, foi tolo, agora julgava que merecia ser acometido por aquela paranóia. Mas o dia prosseguiu normalmente. Continuou com seu trabalho no computador, depois o futebol de domingo na televisão.
          Já de noite, outra vez ele ouviu aquele barulho. Vinha das frestas sobre a janela, um tipo de persiana de madeira que ele não tinha idéia de qual era a utilidade, mas estava lá desde que havia alugado o apartamento. Rapidamente Virgílio muniu-se de um rodo e voltou à janela, fechando-a. O traseiro do bicho era visível verde e cintilante por entre as frestas.
          “Você se aproveitou da minha casa por uma noite. Te abriguei aqui e você atrapalhou o meu sono. Já passou da hora de ir embora”. O rodo o atingiu e o bicho voou para longe. A vitória, hoje, era humana. Contudo, alguns segundos se passaram e uma mancha verde bateu no vidro por fora.
          Aquele pequenino arrombado não estava satisfeito, tinha que tirar mais do homem, abusado que era. Virgílio cutucou o vidro para ver se o bicho não desistia, mas nada aconteceu. Ele bateu forte, com a mão fechada, mas nada fazia aquelas patinhas magras soltarem o vidro. E cada vez mais ele subia como se fosse voltar pelas frestas e, se essa fosse sua vontade, nada podia ser feito para impedi-lo.
          Ele tinha inseticida guardado, só não lembrava onde. Correu para o quartinho onde guardava tralhas, mais velharia do que qualquer coisa. Voltou com uma lata de algo que fedia muito. No entanto, havia passado tempo suficiente para aquele pequeno traidor se infiltrar em qualquer canto da casa.
          “Foda-se”, disse Virgílio, borrifando repetidamente o spray malcheiroso por toda a parte superior da janela. Ele esperou alguns instantes para ver se algum cadáver diminuto caía para fora de sua casa, mas nada aconteceu. Nada aconteceu e Virgílio voltou à paz de sua rotina.
          Seis meses depois já faltavam poucos dias para o Natal. Virgílio estava armando uma grande árvore. Estava frio, chuviscando e a janela estava aberta. Foi o erro dele. Algo veio voando pela janela e ele reconheceu prontamente o que era. O animal bateu na parede e caiu por entre os galhos numerosos e artificiais da sua árvore, muito bem camuflado entre enfeites brilhantes de todas as cores. “GRILO FILHO DA PUTA!”