20.6.16

O fim do primata Marcelo

          Marcelo era um mandril. Vivia no Rio de Janeiro e trabalhava na Polícia Federal. Havia passado num concurso público e desde então estava lotado na Praça Mauá. Era responsável pelo setor de certidões. Um bom símio, embora tivesse um histórico duvidoso.
          Ele não era casado, mas tinha uma bela namorada com quem vivia há mais ou menos cinco anos. Ângela era uma bela loura de pernas longas e olhos cor de mogno. Ela queria ter filhos com Marcelo, mas não podia por razões óbvias. Ela era humana e ele não.
          Em janeiro de 2009, após muitos dias de calor intenso no verão carioca, choveu por horas em Botafogo, onde ele estava de passagem. Estava no Shopping Rio Sul comprando algumas roupas para uma viagem que faria ao Chile com seus amigos menos peludos. Ele atravessou o túnel para Copacabana a pé, fora abordado por um assaltante e baleado na cabeça. O macaco morreu; mais um macaco vítima da violência na Cidade Maravilhosa.

6.6.16

Diabos! II

    Cristóvão espirrou quatro vezes seguidas e, graças a isso, saiu brevemente de sua pista. Ele rosnou de raiva enquanto procurava a caixa de lenços no porta-luvas sem sucesso. Tentava manter os olhos na pista e, depois de abrir o compartimento, ainda falhou em achar o que buscava.
     Merda  vociferou.  Porra de alergia do Diabo!
     Ei  alguma voz cavernosa respondeu.  Não tenho nada a ver com ela.
    Olhando para o lado, o homem percebeu que alguém havia se materializado no banco do carona. Não um alguém qualquer, mas uma face familiar e caprina que havia visto há mais de uma década. Todo aquele tempo não a apagou de sua memória, normalmente falha.
     Quanto tempo, hein, Cristóvão?  disse o demônio.
     Céus  disse Cristóvão, recuperando-se do susto. Ao perceber o que havia dito, benzeu-se com a mão direita.  Digo... cacete. Faz uns quinze anos.
     Por aí. Mantenha os olhos na pista, diabo.
     Diabo é você.
    Tim era seu nome, Cristóvão lembrava. Não podendo argumentar contra o que acabara de dizer, o demônio deu de ombros e assentiu com a cabeça. Os chifres raspariam no capô se a entidade profana não tivesse a cortesia de manter-se corcoviada em seu banco.
     Cuidado com essa porra desse chifre aí, parceiro  Cristóvão enfatizou.
     Tá desbocado, hein, rapaz? Que houve?
     Tu tá me devendo 250 ainda do banheiro que tu fodeu no meu apartamento.
     Você ainda mora lá?
     Não. Faz muito tempo que não. Se eu fosse te cobrar juros, eu tava rico.
     Acredite ou não, fico feliz que tenha citado esse incidente. Me desculpa por aquilo, mas estou aqui pra tratar de negócios mesmo.
    O quê?
    O demônio agora tinha um charuto na boca, saído sabe-se lá de onde. De seu polegar direito saía uma chama alta, tal qual um isqueiro potente. Era cubano, e Cristóvão sabia exatamente qual era, pelo cheiro.
     Negócios, meu velho  disse Tim.  O que são 250 reais?
     Pra você, acho que nada.
     Nada! Claro. Sei que não está fácil pra ninguém.
     Sabe, é?  Cristóvão sorriu, pois era difícil acreditar.
     Sei. Você tá preocupado com o seu KPI, eu sei. E no escritório anda rolando uma conversa de corte nos gastos, não é?
    O sorriso sumiu do rosto de Cristóvão. Finalmente a mão vermelha e colossal de Tim ofereceu-lhe um lenço. Ele tomou e assoou o nariz, aliviando-se novamente.
     Você está lá há muitos anos, você tem know-how, é confiável, mas não se engane. O mercado está atrás de carne fresca. Você não é carne fresca, e não será em outras empresas também. Capaz de ter que limitar suas opções no futuro próximo. Economizar um pouco. Levar uma vida mais modesta, mais “light”.
     O que você quer?  Cristóvão indagou, pois nada na vida era de graça.
     O que eu quero? O que eu quero não importa. O que você quer, Cris?
     Não me chame assim, é Cristóvão
     Desculpe. Mas e aí, Cristóvão? Essa alergia?  Tim estalou os dedos.  Já era. Gastar dinheiro com isso é passado. Mais importante ainda: sua saúde! De que adianta dinheiro sem saúde, chefe? Toma aí um pulmão novo. O que o médico te falou fica no passado também. O que importa é o agora.
    Tim deu uns tapinhas no peito de Cristóvão. Toda a coriza havia sumido. Respirava como fazia quando era um recém-adulto, ainda sem o costume de fumar. Quando o charuto lhe foi oferecido, ele tomou e experimentou. Não caiu morto, pelo contrário. Sentiu-se como já não havia há décadas.
     Isso é bom, é interessante  disse Cristóvão.  Mas não existe almoço grátis, como dizem, né?
     Quem foi que disse essa merda?  Tim riu.  “Não existe almoço grátis”. Com o dinheiro que você tem agora, o almoço ser grátis ou não vai ser irrelevante.
     Sério? Mas não pode estar fazendo isso por bondade.
     Vou deixar essa tua dúvida no ar. Não te dei escolha, dei? Aproveite bem a vida enquanto dura, Cris.
    A figura evaporou numa nuvem densa de enxofre. O cheiro era curioso, fez Cristóvão tossir. Ele parou o carro no acostamento e saltou pra fora. Percebeu, tirando o charuto da boca, que havia saído de uma Lamborghini que certamente não era o mesmo carro no qual havia entrado. Ele abanou a fumaça remanescente de seu benfeitor e murmurou:
     É Cristóvão, porra.