27.4.10

Antíteses

— Minha cidade é cinza e tem cheiro de pedra molhada. Comidas e bebidas possuem sabor de tristeza. Só eu vivo aqui e nunca durmo.
— Minha cidade é verde, rosa, amarela, azul e todas as cores que puder sonhar. Comidas e bebidas têm sabor de aurora. Muita gente lá vive. O sol se ergue cedo e se põe tarde. Nós adormecemos no crepúsculo.
— Vou lá morar.
— Não permito.
— Por quê?
— O que será da sua cidade sem você?
— Morrerá.
— Se a sua cidade morre, como espera que a minha viva?

22.4.10

O sol no asfalto

A vida é sardônica e vai fazer de piada as suas desgraças. Já estou semi-acostumado. A primavera chegou e as flores nos campos estão brotando nas mais diversas cores. O sol chega a me cegar, me esquenta e se recusa a sumir do céu antes das nove. Meus olhos, porém, não se interessam. O cansaço se apodera de mim. É como um tumor pesado demais para ser carregado. A natureza me observa com escárnio, não é a primeira vez que ela me esnoba com gracejos num momento inoportuno.

Hoje saltei desiludido do coletivo. Não procurei os cigarros, não me enganei com o sol. Na sombra, o frio é tão perturbador quanto o inverno.

Há um longo caminho a ser percorrido. Campos verdejantes – e agora salpicados de rosa, branco, amarelo e roxo – são cortados por uma linha cinzenta de asfalto e concreto. Há duas mãos nessa pista e, também, um canto para os pedestres e ciclistas, mas não há uma divisão significante. A calçada não é mais alta, não existe meio-fio. Passam por mim carros, caminhões e, eventualmente, uma bicicleta ou duas.

Na minha cabeça há sempre um demônio a sussurrar para cada automóvel que passa. Ele quer ver um caminhão desgovernado. Ele teria um prazer sexual em me assistir ser atingido por algum veículo num impacto de 4 toneladas. Às vezes me pergunto se este é o morcego faminto da minha criatividade, que me espreita em busca de uma ferida para saciar sua fome parasita.

Hoje nem o cachorro me arrancou reação alguma. Ele surgiu descoleirado, desimpedido. E latiu, e rosnou, e flexionou as pernas. Calou-se, porém, ante a rejeição. O resto do meu passeio tortuoso foi só automóveis, sono e ar puro. E o sol me incomodando ao iluminar o asfalto. Imaginei, naquela hora, que aquilo era uma analogia perfeita à minha vida. As pessoas passam por ela numa rapidez vertiginosa e não tiro nada disso. Algumas sorriem, outras franzem o cenho; algumas acompanhadas, outras solitárias. Todas vão embora.

Contudo, estava errado. O simbolismo perfeito me esperava no fim da estrada. Um cavalo de cauda erguida, despejando toletes de bosta. Aquilo, sim, é a vida, como ela é. Uma merda, asquerosa. E sai aos poucos de dentro de você.

Agora o sol não consegue me alcançar com suas promessas falsas. Ele banha tudo ao meu redor e me chama para viver. Só que eu estou pouco me fodendo.

11.4.10

Bife de Esther – Vila Anope, 2ª Temporada, Episódio 13 – Anjos & Demônios

– Oh, meu Deus... Que pecado cometi para receber tal fúria? Por que tudo isso está acontecendo comigo? Dessa forma? Por que? Primeiro foi Thácito... Meu pai Lázaro... A fazenda Schindehette... E agora minha liberdade? Deus fiel, meu Deus justo, por que permitiu que eu fosse acometida por tamanha desgraça? Isso não pode ser um tipo de provação... Minha mente humana não é capaz de entender que uma injustiça tão grande possa ocorrer com pessoas boas. O Senhor me tomou tudo, tudo o que eu tinha o Senhor me tirou... O Senhor me desamparaste... Fui lançada à própria sorte... E que sorte... Sou uma desgraçada, condenada a uma sentença que desconheço a causa verdadeira. O que há de pior para acontecer? Cheguei ao fundo do poço. Não tenho como me reerguer e nem onde e quem me apoiar. Eu não tenho ninguém... Só me resta apodrecer aqui... – Esther respira fundo e fecha os olhos, forçando as lágrimas deslizarem de seus olhos. Ela tenta controlar suas emoções – Será que tudo em que acreditei é mentira? Este Deus que minha mãe servia, que eu servi por quase toda a minha vida é mesmo real? Será que tudo que acontece não é obra do acaso? O que é esta fé? Um Deus ausente em tempo de aflição. Um Deus inexistente. Eu me amaldiçoo completamente... Por ter acreditado em todas essas crenças vãs... Por ter inventado algo em que acreditar... Não há esperança para o mundo dos homens...

7.4.10

Dois ratos

— Alô?
— Oi! Já cheguei.
— Chegou aonde?
— Estou no aeroporto. Não vem buscar-me?
— Com quem você quer falar?
— Não é o Breno?
— Sou eu. E você é...?
— Lívia. Não lembra? Eu disse que chegaria às oito. Onde você está?
— Eu? Bem... Já estou chegando.
— Estava dormindo. Não estava?
— Estava.
— Muito bom! Agora, estou sozinha no meio dum monte de gente estranha. Queria ver se me sequestrassem.
— Não vão sequestrar você. Fique aí, não fale com qualquer um e logo estarei ao seu lado. Certo? Ligo assim que chegar.
— Quanto tempo?
— Cerca de vinte minutos. Não sei. Dependo de ônibus e os motoristas não parecem gostar muito de mim.
— Ai! Vou ter um troço.
— Já vou, porra!

Eu ainda trajava as roupas do dia anterior. Sequer me dei ao trabalho de arrancar os sapatos. No carpete, havia uma garrafa de uísque pela metade, de pé, pois, antes de me atirar à cama, deixei-a ali com todo zelo. A embriaguez traz bons sonhos.

Fiz o que tive de fazer: fiquei de pé, apanhei a bebida, dei um longo trago e andei cambaleante até o banheiro, tentando lembrar o dia anterior. Finda a escovação, enchi a boca de uísque, bochechei e engoli. Logo, estava inerte, perplexo com o espelho, que me sorria. Algumas vezes, não me reconheço ali. Estático, observo bem, e o que vejo não é meu reflexo, não sou eu: é um estranho me encarando pela janela de algum banheiro que se parece com o meu. Gingo, ele faz o mesmo. Depois, sorrimos um para o outro. Sou destro, ele é canhoto. Quando falo, seus lábios se mexem, mas é a minha voz que ouço.

Acertei um jato esbranquiçado de urina dentro da privada, enquanto a debochada figura me observava. A descarga ruiu em seguida, o zíper arranhou a calça, um copo se quebrou na cozinha, uma cadeira foi ao chão e a porta bateu atrás de mim, ao sair. Às cinco horas, retornei com Lívia e suas malas.

— Fique à vontade. Deixe as coisas por aí.

Ela observava o apartamento não sei se surpresa ou espantada. Fui para a cozinha colher os vidros. Ouvi-a comparar o lugar a um chiqueiro.

— Você pode ficar com a minha cama. Costumo dormir em qualquer canto. Não mexa nas minhas bebidas nem comida, a não ser que eu permita.

Apanhei a cafeteira do armário, abri um saco de café, despejei o pó no filtro, enchi o recipiente com água e esperei ferver. Com passadas leves, fui até a sala. Prostrado à janela, observava a rua, enquanto a visita se organizava. De repente, percebi que dava meu último gole de uísque e o sol se punha. Foi quando a misantropia me abraçou.

Lívia surgiu à minha retaguarda.

— Não é uma boa vista.
— Ah! É, sim.
— Um monte de prédios, engarrafamento e gente estúpida passando. Não dá para ver o sol se pôr nem nascer... ou o mar.
— Aquela porta — indiquei — também serve de saída.
— Por que não para de beber?
— Já parei.
— Claro! Findou a garrafa.
— Posso comprar outra.
— O que você faz da vida?
— Bebo-a.

O café me veio à memória, quando uma senhora escapava dum atropelamento. O aroma entupiu minhas narinas, durante a imaginação duma poça de sangue negro forrando a pista. O motorista, desesperado, sairia do veículo e encharcaria seus sapatos de DNA desconhecido. No entanto ela, diferente de mim, possuía família, e cada filho e neto seriam contatados assim que a sirene cessasse, respeitando o aviso de “Silêncio. Hospital”.

Na cozinha, tomei uma dose quente e amarga de lucidez. As paredes haviam se estreitado. Sentado à mesa, introduzi mais breu ao âmago. Na sala, a hóspede, pela porta, me encarava minuciosamente. Aos poucos ia desaparecendo da minha vista e só a vi outra vez quando acordei pela segunda vez, nesse dia.

Lá estava ela, sentada na esteira, debaixo da janela, impedindo meu acesso à aquarela panorâmica da cidade, com um dos meus cadernos no colo, lendo o que quer que fosse. Do lado de fora, a paisagem brilhava em diversas cores e o silêncio era regente.

— À noite, a vista é melhor. Não acha?
— Não vi.
— Que horas são?
— Quase dez — respondeu sem tirar os olhos das páginas.

Agachei-me ao seu lado com o único propósito de saber o que lia.

— Minhas memórias...
— Quem é ela?
— A mulher dos meus sonhos. Passado passado. Eu havia me embriagado, chegado a casa em delírios. Caí na cama vestido como estava. Deixei, por falta de juízo, a porta do apartamento aberta. Foi assim que ela entrou. Ouvi passos como se alguém marchasse dentro da minha cabeça. O medo abriu meus olhos. Interroguei a intrusa, todavia nem eu me ouvia. Insisti. Nada. Suas mãos, em meu rosto, me padeciam. Sorriu. Irrisão. “Vou dormi com você, hoje”, disse, “descanse em paz”. As pálpebras cederam ao encanto, o sono me embalava na melodia da sua voz. Não a vi, posteriormente; apenas em sonhos.
— Bela história. — Levantou, despindo as pernas das minhas anotações. As folhas deslizavam pela carne farta até tocarem o piso. Desdenhou minha presença, debruçada sobre o parapeito, e pela primeira vez quis saber quais eram seus pensamentos.

Procurei um espaço à janela, e como se meu corpo fosse frio demais, esfregou as mãos contra os braços, desaparecendo corredor adentro, em direção ao quarto. Tremi. Fora surpreendido pela brisa noturna deste bairro adormecido.

Passei horas atirado ao chão, em estado de semiconsciência, ouvindo uma sinfonia desconhecida. Deitada em mim estava a embriaguez, aprisionada em vidro quadrangular, rotulado como possuidor de quarenta por cento de álcool. Amava-a como Moraes amou; encarava e dizia: “Que seja eterna enquanto dure”. Beijava-a como se fosse a última. Contudo, naquele instante, só queria dela o sono.

Levantei em pernas sonâmbulas, as quais arrastava pelo corredor, ao quarto. A mão tentava se equilibrar na maçaneta em tato tão débil que, escorregando para a direita, fez a porta abrir. A luz vindoura afastou a escuridão alguns passos para trás. Dormia bela e eu lhe assistia. Cerquei-a, trôpego, indo de encontro ao leito, espantando seus sonhos valorosos.

— Perdoe. Não quis arruinar seu refúgio.
Coçou um dos olhos, bocejou e respondeu em voz falha:
— Venha. Deite também.

Suas pálpebras semicerradas velavam duas castanhas. A cabeça pendia um pouco para a esquerda, fazendo com que o tufão que emaranhara seus fios revelasse a alvura do pescoço. Na boca de róseos lábios entreabertos, via-se parte da sua arcada de mármore. O desejo rompante foi de tocar sua face cuja carícia, aos meus olhos, seria veludo.

Estendi meu braço, fui puxado. Na contra-força, fi-la se erguer. Presa aos meus passos, guiei-a para fora do apartamento, cruzando muitos outros, saltando degraus acima até o terraço. A porta cedeu fácil ao chute. A noite, abraçávamo-la.

Havia música oriunda de baixo. As notas de um piano solitário saltavam, inundavam os becos, seguiam pelas ruas até invadirem minha cabeça. Fechei os olhos acreditando que ouviria melhor e, quando os abri, a noite também as quis escutar. Andava para lá e para cá com pernas trêmulas, até que ousei dançar. Os tremores se tornaram compasso. Agarrei Lívia pela cintura e notei o ar encher-lhe o busto. Tímida, dançou também, mas a desarmonia de seu quadril a afastou de mim.

Provavelmente, um sorriso torto me surgiu aos lábios, quando parei. Nessa mesma hora, uma risada  me escapou da boca em tropeços. Engasguei.

Virado, querendo esquecer a visão da má dançarina, entrevi luzes de alguns barracos do morro de mata densa.

— Veja só — apontei. — Parece até que algumas estrelas caíram do céu, ou fugiram, e foram esconder-se naquelas árvores.

Com os braços para cima, girei fitando o brilho do véu negro que se estendia infinito sobre nós. Temeroso de ir de encontro ao asfalto, sentei no concreto. Engatinhei até a beirada, pousei o peito na poeira, segurei bem firme a borda e calculei a altura. Voltando a cabeça por cima do ombro, vi Lívia petrificada em cintilante palidez. Alva, era um espectro diante do luar. Esgueirei-me para apreciar de perto o lume que ela roubava. Às suas costas, quis seu calor: seus ombros tocavam meu peito e meus braços se cruzavam sobre os seus.

Nossas retinas estavam cheias de lua, quando seus olhos, liquefeitos, foram acariciar minha mão. Os dedos constringiram a carne e eu, fenecido, sussurrei um beijo sob as mechas do cabelo.

— Alô?
— Breno? Não vem trabalhar, hoje?
— Sim, vou.
— Está atrasado.
— Eu sei. Desculpe-me.

Já estava pronto para outro dia amargo. A água da pia me lavou o sono; a garrafa estava onde a deixara: na sala; e a porta só voltaria a ranger outra vez às cinco horas, com o apartamento vazio.